sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Manteiga derretida



Ele não teve mãe, nem pai. Foi criado de casa em casa e viveu infância e juventude como quem recebe favores. De favor em favor sua vida encheu o papo. Por essas e tantas outras razões o Natal não lhe dizia muita coisa. Espírito de  Natal? Era mais fácil acreditar em fantasmas, saci, mula-sem-cabeça. Numa vida em que não havia presentes, o futuro tinha tudo para ser um caos. Que nada! O homem de quem falo hoje é um cidadão exemplar. Pai amoroso, amigo fiel, profissional dedicado, um regalo para quem com ele convive.
Então a gente não é fruto do meio onde vive? Sim, claro que é. Mas nem sempre o meio desprovido de amor produz desamor. Nem sempre o abandono redunda em revolta. Nem sempre a falta de colo impede que um ombro esteja disponível para todas as lágrimas.
Hoje, quando ele fala de Natal, não é da falta de família na infância que se lembra. O  25 de dezembro agora significa outra coisa. Esposa, filhos, netos, colegas de trabalho, amigos que estão, amigos que são, amigos que já  foram. A data nem quer dizer tanto. Na verdade o homem sobre quem escrevo é daquelas figuras raras que batem de frente com o parecer do mestre Nelson Rodrigues, que dizia que toda unanimidade é burra. Nesse caso e unanimidade é cúmplice. Não conheço alguém que não goste dele...
Para piorar e melhorar a pequena história, o amigo sobre quem me permito discorrer um pouco tem um coração gigante. E mole! Por trás de palavras contundentes e revoltas bombásticas contra o trem da história quando descarrila, vive um sujeito ímpar.
Tudo bem que não significa o caso de invocarmos o Espírito de Natal ou alardearmos santidade em quem quer que seja. Ele nem aprovaria isso. Mas que  posso me permitir dizer que acredito em anjos, isso eu posso. Ao menos naqueles que enxergo e me fazem ver o mundo como um lugar divino, apesar do humano; e humano, apesar do falso divino.
Feliz Natal, Beni Andrade... Um amigo para chamar de nosso!

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Eu quero falar dos que mamam

Preparávamos o programa de rádio Papo de Redação, da Parecis FM de Porto Velho, quando o radialista Sérgio Pires surgiu com o pronunciamento da deputada Cidinha Campos, falando aos seus colegas na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. A gravação está no You Tube e exibe um dos mais contundentes pronunciamentos já registrados contra a corrupção. "Eu quero falar dos que mamam" é a frase que abre a sua fala, dirigida a um plenário bovinamente silencioso. A deputada estava indignada, com o fato de que um político comprovadamente corrupto, filho de um ex-deputado preso pelo mesmo motivo, com agravantes de formação de quadrilha, se candidatava a conselheiro do Tribunal de Contas.
Quando comecei a escrever sobre o impacto que seu discurso causa em quem assiste, achei que seria possível transmiti-lo aqui, em palavras envolvidas pelo manto da crônica. Mas não, não parece ser possível. Melhor é recomendar um acesso ao canal de vídeos e assistir; uma, duas, dez vezes. A força das palavras da deputada é tão grande, tão avassaladora, que além de decidirmos pela repercussão dela em nosso programa de rádio, entendi que deveria escrever algo sobre o que vi e ouvi.
Há muito tempo não via um discurso assim. Sempre admirei os grandes oradores. Muitos dos quais, mesmo com argumentos mais rebuscados, me impressionam pelo que disseram; no improviso ou com base em letras escritas para ficar na história. Mas a deputada Cidinha, ao gritar contra o que chama de canalhas consagrados, deputados associados a uma camarilha, faz um discurso em outro tom. Outro ritmo. Outra dimensão. Ela não nos chama à reflexão ou ao debate. Nem nos convida para entrar na sala de estar e fumar um charuto enquanto discutimos o rumo da política vigente. A deputada rasga verbos e adjetivos. Escancara podridão e raspa a lama das paredes da Casa de Leis onde exerce seu mandato. Ela não parece ter medo. Ao contrário. Parece querer nos dizer, aos brasileiros de qualquer canto, que não é para termos medo. Afinal, a quadrilha que ela condena lá, tem extensões pelos ambientes do poder em todo lugar.
Fizemos do programa na quarta feira de um 14 de dezembro chuvoso, um desabafo de quatro comentaristas calados, com voz de uma mulher entristecida pela sujeira e enlouquecida pela revolta. Ela falou mais uma vez... graças às ondas do rádio, que replicaram para Rondônia e via internet para tantos outros milhares. E vai falar ainda muitas outras vezes. Tantos forem os cliques on line, em busca de desabafos que possam lavar um pouco nossa alma. Pode até ser que não nos redima, nem nos salve. Mas já é um começo. Pena que existam tão poucas Cidinhas em nossos parlamentos. Pena que existam tantos canalhas dentro das urnas...

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Coluna para cadernos de esporte 31 outubro 2011

Gato por...

Uma breve passada pelo elenco do Palmeiras já seria suficiente para encher um Parque inteiro de esperança. O Verdão tem Cicinho, Tinga, Rivaldo, Fernandão... Tem até um Patrick Vieira. O problema é que são todos genéricos. Não tem original. Atletas com nomes de jogadores consagrados no Brasil e no mundo, mas que no Palestra apenas desempenham a função de cumprir tabela.

Lebre

Muito pouco para um time acostumado a títulos. Mas o suficiente para Felipão botar o bigode de molho. Eis aí alguém que precisa assumir uma parcela da culpa. Para de apontar a arbitragem, jogadores e o azar como os principais vilões. Passa pelo comando técnico o problema que nasceu nos gabinetes do clube.

Bom, mas...

Ficamos atrás de Cuba e atrás de nós mesmos no Pan de Guadalajara. O Brasil, com suas 48 medalhas de ouro, conquistou 6 a menos do que no evento do Rio, quatro anos atrás. De qualquer modo continua na frente do Canadá, que sempre superou os brasileiros em competições das Américas. O que ainda é pouco...

Podia ser melhor

Um país com sonho olímpico não pode ser conformar com derrotas que pareciam vitórias garantidas e fracassos que se repetem por conta da falta de investimentos. Claro que é importante o apoio que o Governo e algumas marcas tem dado a pelo menos 100 atletas de ponta. Mas num país de 200 milhões, esse número é gota d'água.

2012

Principalmente porque nas Olimpíadas os nossos adversários não serão vizinhos que falam espanhol apenas. Mas algumas das grandes potencias do esporte, cujas marcas em algumas modalidades ainda são um sonho de consumo da maioria de nossos atletas.

Valeu ouro

O que valeu mesmo foi a grande cobertura da Record e algumas surpresas que o esporte reservou pra gente. Sem contar que em algumas modalidades, como Vôlei por exemplo, o Brasil mostrou que tem uma gereção nova com possibildiade de manter a hegemonia por um bom tempo.

Sapecada

Sim, é verdade. Ronaldinho Gaúcho teria dito que acordou com um gosto de mate amargo na boca...

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Ignorantes unidos

Apresento um programa de TV com vários quadros interativos. Num deles comento a respeito das datas históricas. Que dia é aquele e o que representa no calendário. Caso não tenha muito a ver com a agenda local, ou nacional, apelo para os maias, os celtas, os troianos, enfim, alguém em algum lugar fez daquele dia algo interessante.
Nem sempre é fácil levar as datas a sério. Assim como é difícil acreditar que determinados projetos nas câmaras e assembleias sejam reais. Mas essa é uma outra história; voltemos aos anos e seus dias.
Hoje, por exemplo, quando escrevo a crônica para ser publicada na próxima quinta, dia 8 de setembro, comemora-se o Dia Internacional do Sexo. Um emblemático e curioso seis de setembro, ou 6 do 9, como preferiu a empresa de preservativos que criou a data em 2008. Lance de marketing que acabou ficando famoso e entrou para o calendário pela porta do motel.
Foi pesquisando sobre o dia que acabei me deparando com datas curiosíssimas. Veja só: ainda em setembro, no dia 25, comemora-se o Dia do Cadáver Desconhecido. Quer dizer, comemora-se não, lamenta-se. Dia que está longe de 17 de dezembro, o Dia do Coveiro. Em Belo Horizonte, 14 de Janeiro é Dia do Manobrista de Carro. Os flanelinhas também querem reivindicar uma data só para eles. Já as Desfiadeiras de Siri tem sua celebração especial marcada para o início do mês de agosto; que tem também um dia reservado para a Luta de Braço.
Foi meditando sobre as razões para se criar um dia em homenagem a alguém ou algo que pensei em sugerir o Dia do Não Sei. Um verdadeiro alento ao ignorante que existe dentro de cada um de nós, mas sabe-se lá por qual razão permanece enrustido. Que dificuldade a gente tem em afirmar que não sabe. Qualquer que seja a pergunta, lá vai a preparação para um resposta. Nem que seja pela metade; manca, capenga, ou sem pé e sem cabeça. Sabia que existe o Dia da Mulher do Pastor Evangélico? É capaz de alguém na turma dizer que sim... E ainda explicar a razão.
O Dia do Não Sei podia ser todo dia. A propósito: se não sei digo que não sei, e pronto!

quarta-feira, 31 de agosto de 2011



Roleta russa de bala doce
 
A sirene do serviço de emergência parecia soar ainda mais  alto.  Tive a impressão de que mais pessoas do que o  normal estavam aglomeradas para ver o que tinha acontecido. Incrível como na hora de um acidente aparece gente de todo lado. Dá a impressão de que são poucos os que  tem algo  a fazer de fato. Naquela manhã, eu também esqueci que tinha alguma coisa pra fazer...
 
Poucos segundos antes do ruído da freada e o barulho seco de uma pancada violenta, o garoto que vendia balas bateu na janela do meu carro. Recusei,  ao mesmo tempo em que sorri para ele. Amável, pequeno, sorridente, corria como um louco entra motos, caminhões e automóveis, como se sua pressa fosse ajudar no faturamento e o lucro de algumas moedas a mais.
Não sei ao certo como ele foi atropelado. Notei que a vítima era ele por causa da correria que surgiu logo após o som dos freios. Estacionei de qualquer jeito e fui direto ao encontro do menino. Desacordado e ensopado de sangue, havia sido atirado longe após o impacto.
 
A cena piorou por conta das duas irmãs e do irmão mais velho, chorando e tentando fazer algo para  socorre-lo. Ainda bem que vários celulares ao mesmo tempo, fizeram a mesma chamada. A ambulância do SAMU chegou em  poucos minutos. O motorista estava desesperado. Garantia não ter visto o menino. Ele apareceu do nada, como uma bala, explicava gaguejando para os policiais. Que salvaram sua pele. Não fossem eles, alguns mais exaltados teriam deixado mais  um ferido naquela hora.
 
Devidamente socorrido, o garoto foi levado ao hospital. A polícia se encarregou de encaminhar os irmãos e eu fiquei ali imaginando mil coisas: Quem daria assistência a eles? Onde moram os pais? Se é que eles  tem um casal em casa... O que pensar de uma sociedade onde crianças naquela idade, ao invés da sala de aula, estão em meio ao labirinto onde se respira fumaça??
 
O som estridente de uma buzina me despertou. Vi o sinal aberto e a criançada ainda estava ali, entre os carros. A cena do acidente foi imaginação minha! Viajei entre pensamentos e da sirene ao sangue, tudo tinha sido fruto da minha mente. Não sei se é porque quando temos filhos a gente pensa no pior para que o pior nunca aconteça, mas o certo é que fiquei tão preocupado com um menino  frágil em situação tão delicada, que acabei ouvindo, vendo e questionando mais do que devia. Ou  no  questionamento não exagerei tanto?

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Bom pra cachorro

Lilico foi um dos meus  heróis da infância. Não o personagem de  TV. De quem meus pais eram fãs. Mas o cachorro lá de casa. Cujo nome foi dado por causa do Lilico da telinha; engraçadíssimo com seu bordão no programa Balança  Mas Não Cai: “Alô Brasil...aquele abraço”, e mais tarde na Praça da Alegria, com o homem do bumbo cantando “ Tempo bom, não volta mais... saudade de outros tempos, de paz”.

Pois então, ele é quem inspirou o batismo do vira-lata mais inteligente e fascinante que tivemos. Protagonista de um dos episódios marcantes na vida da família. Pelo menos é assim que ainda enxergo.  Cada um vê  com a dimensão que a emoção permite e os olhos da alma alcançam.

Eu estava jogando bola no campinho ao lado de casa, coisa que  fazia até mesmo quando chovia, e de repente começou o alvoroço que havia quando a carrocinha aparecia no bairro. Os homens que recolhiam os cachorros na rua, eram os vilões que toda criança odiava. Ainda mais com as histórias de que os cãezinhos pegos sem coleira iam direto para a fábrica de sabão.
Curioso como os vira-latas  eram resistentes e cumpriam muito bem o seu papel de membro da família sem pedigree. E nosso Lilico era o cara. Interessante também como a liberdade deles era incrivelmente recompensada com sua fidelidade. Sem coleira. Era assim que  viviam. Não que elas fossem caras. Mas o vira-latas  que entrava pela cozinha como membro da casa era um ser livre. Mesmo tendo suas obrigações familiares. Por isso, para mim, a carrocinha era o carro do inferno.

Naquela manhã, quando a gritaria da meninada aumentou, meu precioso Lilico foi capturado. Levaram o xodó dos Domingues e meu grande amigo. Entrei em casa, chorei atrás da porta do quarto, como poucas vezes. Até que minha mãe gritou alto, num rompante de alegria que nem era comum em seu comportamento mais na dela mesmo. Lilico havia voltado. Correu para debaixo da cama, onde também corri para encher meu pequeno herói de beijos. As lambidas eram os beijos dele.

Poucos minutos depois um homem bateu em casa para falar com dona Paulina. Disse que era da carrocinha e que um dos cachorros havia conseguido levantar a tramela da porta do furgão fazendo com que todos os cães escapassem. A rua ficou cheia e os vilões teriam que recomeçar tudo de novo.
Como quem não tinha nada com isso, mas desconfiada de que o autor da façanha era o nosso Lilico, ela despistou, disse que estava preparando o almoço e voltou para dentro. Me contou o caso e rimos para a vida toda. Se de fato foi ele quem causou a lambança eu não sei dizer. Mas para mim foi! Meu herói e o maior de todos para a cachorrada do bairro. Tempo bom...

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Cada um no seu cada qual

Dia desses o computador pessoal fez aniversário. A informática, irmã mais velha dele, também assoprou dezenas de velinhas. Comemorei por várias razões. Você deve ter também as suas. No meu caso a principal delas é a facilidade em escrever. Não digo com relação ao talento na escrita. Algo que ainda estou procurando aprender e desenvolver com os grandes mestres. Eu falo de escrever mesmo. Com as teclas.

É que muito cedo, embora gostasse das palavras, demonstrei uma grande dificuldade em me tornar legível. Os garranchos do primário viraram letra de médico na juventude e dai em diante. Letra de médico: uma desculpa esfarrapada para letra feia. Virei jornalista e me acostumei a dizer que escrevia daquele jeito pois era só para eu entender mesmo. Outra saída para o fracasso na caligrafia.

O computador e seu teclado ajudaram esse escriba como salvadores da pátria. Claro que nem tanto no começo. Se carregar uma máquina de datilografia (alguns se lembrarão da Olivetti portátil) já era dava um trabalhão, imagina alguém por ai com um  486. Mas o notebook chegou, os tablets também e as teclas do smartpohne fazem  muito mais do que qualquer bilhete poderia imaginar. Especialmente no meu caso, em que recados escritos à mão geralmente precisam de um especialista.

Na mesma medida que o computador salvou minha letra, não tive cura para a incompetência em desenhar. Não sai nada. Absolutamente! Vejo, admiro e me deleito diante das obras de arte e aquela incrível leveza das linhas, cores, detalhes, mensagens. Fica por aí. Como se fosse alguém que adora uma música bem cantada, mas prefere dançar, igual ao pinguim do Happy Feet. Sou o pinguim e não pinto.

Na infância a única coisa que diziam que eu pintava era o sete. Frase que embora o Aurélio diga o que é,  ninguém sabe explicar como nasceu. Tudo bem! Eu desisti muito cedo. Quando a professora Nazira bateu na minha mão porque eu não conseguia desenhar uma manga, rompi com o desenho e com a fruta, de uma só vez. Se bem que de vez em quando eu sonho que estou produzindo uma tela, uma verdadeira obra de arte. De repente aparece um serzinho azul, do tamanho de três maçãs e sentencia: você não smurfa nada!!

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Maria ansiosa de graça

Pense numa pessoa ansiosa! Pois eu duvido que ela seja pior que a Maria das Graças. Maria desgraça, como ela mesma costumava se chamar, prevendo que algo ia dar errado ou se recriminando pelos defeitos do planeta todo. Das Graças era uma viúva, amiga de minha mãe, que acabava sendo a alegria da casa quando nos visitava, tamanha a expectativa que criava em cima de qualquer episódio. Até um exame de sangue rotineiro agendado para a manhã seguinte era motivo para um rosário de observações, medos e ansiedade. Meu Deus, dizia ela, e se a agulha estiver contaminada? E se a enfermeira errar a mão? E se chover logo cedo e eu atrasar? Vou ter que esperar horas... Perco o meu dia assim... Como se eu não tivesse mais nada para fazer, reclamava falando rápido, com sua metralhadora de palavras. Era a mais imitável das visitas lá de casa. Quando saia, as imitações eram inevitáveis. A turma ficava remedando ela, como se dizia naquele tempo...

De tanto ficar ansiosa, Das Graças ficou sabendo que o negócio podia ser uma doença. Leu em algum lugar e confirmou num programa de TV que ansiedade era um mal moderno. Se bem que quando eu era criança esse negócio de modernidade ainda era coisa pro futuro.  No fim das contas a vizinha estava mais antenada. Ao menos no que dizia respeito ao seu próprio umbigo e os males que lhe afligiam.
Certo dia entrou pela cozinha de casa e chamou minha mãe para um dedo de prosa. Ainda mais assustada do que de costume, veio avisar que sumiria por um tempo. Ficaria fora. Com o drama que lhe era peculiar, anunciou que estaria num local sem contato nenhum. Nada de telefonemas. Nem cartas (algo que se escrevia naquela época). Feitas as despedidas, com direito a choro alto, já que as duas adoravam  uma cena, de fato ela se foi...

Só soube muitos anos depois que a vizinha tinha ido fazer um tratamento para sua ansiedade. Se hoje em dia alguém fala que vai ao psicólogo já é taxado de maluco, imagina em meados dos anos 70. A vizinhança toda iria fofocar que Das Graças tinha ficado pinel. Por isso, para os demais,  a desculpa da viagem para ficar com parentes. Mas o fato é que  ela havia mesmo ido se tratar com especialistas. Se cadastrou  para um período de testes e novas experiências.
Quando minha mãe me falou isso, não tive atraso em perguntar. Como uma pessoa tão ansiosa aceitou se submeter a um tratamento que ninguém conhecia? Dona Paulina pensou, pensou, voltou pro café e resmungou alguma coisa como, a Das Graças se apaixonou pelo médico. Louca pelo doutor,  aceitou a proposta por completo. Casa, comida e divã...

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Que rainha sou eu?

Salomão Hayala morreu de novo. Na novela O Astro, em 1977, ele foi assassinado pelo personagem interpretado por Edwin Luisi. Ali  foi inaugurada a era do “Quem matou?”. Mais tarde seria Odete Roitmann. Depois virou coisa tão comum que já não parava mais o Brasil. Só que no meio dos anos 70, quando a sala de televisão era o mais sagrado dos  ambientes nas casas, a morte do milionário e a expectativa para saber quem era o assassino, mexiam com o imaginário de uma nação inteira. Novela, jornal e novela eram a sequencia ritual de cada noite em família. No domingo, o programa Os Trapalhões, às sete da noite, era outro dogma quase obrigatório.

Aliás, é bom que se diga,  os homens daquela época  gostavam de uma novelinha. Ou as mulheres já mandavam e nem sabiam. Embora o controle remoto fosse ainda coisa de ficção, o seletor, era esse mesmo o nome, ficava invariavelmente ligado no canal dos folhetins. Sim, novela pode ser chamada assim também! O que os autores imaginavam e escreviam, repercutia  nos salões de beleza, escritórios, escolas e botequins; as redes sociais da época... Apostas e brigas eram comuns, para tentar saber quem afinal de contas era o vilão e homicida.

Não apenas isso! Lembro-me bem do silêncio obrigatório quando começava Saramandaia. Novela que me dava o maior medo. Quando eu podia fugia da sala. A Mulher Gorda e o cara com formiga saindo do nariz me apavoravam profundamente. A música Pavão Misterioso ainda me causa arrepios. Os heróis de Irmãos Coragem, o romance de Selva de Pedra, a trama de Mulheres de Areia, a novidade da  Band com Ninho da Serpente, Os Imigrantes e mais tarde a Manchete com Pantanal, ou as doses de humor criativo na Globo com Que Rei Sou Eu, fizeram das novelas mensagens presentes na vida lá de casa. Ainda assim, não viciei. Nunca fui um noveleiro. Confesso que fiquei sabendo que o Edwin Luisi é importante personagem em Rebelde, da Record, quando li algo sobre Salomão Hayala ter morrido de novo; Agora parece que o assassino vai ser outro.

Curioso é que mesmo sem hoje ser programa obrigatório, nas mídias sociais, páginas on e off line, as novelas ainda dão o maior ti-ti-ti. E as fórmulas continuam as mesmas: Alguém amou, alguém matou, alguém morreu. No país onde a verdade parece mentira e o noticiario beira a ficção, Janete Clair seria presidente, ou presidenta, como queira.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

O tempo e o destino

Entrou na empresa aquela manhã como geralmente fazia. Bem humorado, em paz com a vida, com um bom dia para cada um, como se pessoa por pessoa, todos merecessem sua atenção. Estava feliz também porque havia recebido garantias de que, mesmo com a mudança na empresa, seu cargo estava garantido. Afinal, eram quase 20 anos de serviços prestados. Edgar era um funcionário exemplar. Além de uma excelente rede de relacionamentos, conhecia do negócio. Sabia o que o mercado queria e sempre se atualizava.
Entrou em sua sala, deixou o paletó na cadeira, sentou-se para degustar o café sagrado de cada dia. Dona Rosa tinha caprichado ainda mais no pretinho. Estava quente, saboroso e chegou na hora certa. Depois de uma rápida passada pelos sites e mensagens, seu telefone tocou. Foi chamado para uma reunião com alguns colegas e superiores.
Botou o paletó de novo e seguiu para o andar de cima. Uma reunião a mais, outra a menos. Essa vinha sendo sua vida. Estranhou apenas que ninguém havia lhe falado nada sobre a presença de alguns dos diretores vindos da matriz. Geralmente ele era um dos primeiros a ficar sabendo.
Na sala, seis caras conhecidas e um jovem executivo que ele nunca tinha visto. O sétimo elemento nem lhe deu muita bola. O ambiente estava sombrio. Um dos seus melhores amigos, Paulo Henrique, foi quem puxou a conversa. Edgar, é o seguinte. Vou direto ao ponto, porque também to sofrendo muito com essa surpresa. Esse rapaz aqui, Augusto, vai ocupar teu cargo a partir de hoje. A empresa vem passando por mudanças, sei que tinha te dado outra informação, mas decidiram colocar alguém mais jovem para trabalhar em suas funções.
Demorou um minuto, ou dois, mas um tempo que parecia do tamanho de um dia inteiro, com madrugada e tudo, para Edgar começar a balbuciar alguma coisa. Assimilar o golpe talvez fosse impossível. As primeiras palavras mal saíram. As lágrimas jorraram com um pouco mais de facilidade. Ele não acreditava que estava sendo mandado embora daquele jeito, e a frase sobre a idade pegou como um soco na boca do estômago. Ficou enjoado! A sala parecia diminuir de tamanho e os rostos aparentemente sentidos, perderam o sentido. O filme que passou em sua cabeça, misturava passado, família, noites em claro, projetos, viagens, sonhos. Cabeça que estava com mais cabelos brancos do que a maioria, é verdade. Mas Edgar era um poço de juventude. Ao menos era nisso que acreditava...
Os dias que se seguiram foram os piores de sua vida. Janaína, a esposa, me contou que  ele ficou dentro de casa por mais de uma semana. Sem sair nem para o quintal. A dor da demissão era prima da dor das palavras mal proferidas. Se dissessem algo mais pesado, ou acusassem de incompetência, talvez não tivesse doído tanto quanto ser substituído  por um jovem com cara de colegial. Seu choro impediu que continuasse a falar. Peguei o endereço da clínica de recuperação para dependentes do álcool com  um dos filhos. Começava ali minha jornada para tentar salvar o que restou do Edgar...

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Entre miados e ronronados

Além de quatro humanos, temos em casa três gatos. O Maurice, o Zoboo Mafú e a Sophie.  Assim mesmo, com ph, para dar charme. E charme ela tem de sobra. É uma gatinha persa, cinza, com uma beleza de parar o gatil. Sonho de consumo da esposa, realizado graças a amigos que nos deram de presente. Os dois machos são o exemplo do felino sossegado. Maurice, carinhosamente chamado de Teteco, é persa também. Branco, com extremidades amarelas, volta e meia fica mais para o bege. A cor indica que, como ele não é um camaleão, está na hora de mais um banho. Se quiser continuar dormindo na cama...
Já Zoboo é o exemplo maior de fidelidade e gratidão animal. Ele foi encontrado por minha filha mais velha, adotado, recebido com honras de herói de guerra. Como forma de expressar seu carinho segue a salvadora por toda a casa, o tempo todo. Com o perdão da comparação, fanáticos que me perdoem, o gato parece um cachorro. Daqueles de cinema, que esperam o dono, vivem pelo dono, morrem por ele. Nosso Zoboo tem outra característica: é gordo, muiiito gordo! Uma barriga desproporcional, que causa algumas dificuldades. Sentar, ou tomar um banho de gato é tarefa de reality show para ele.
Com os três completamos nossa felicidade. Claro que temos as mesmas manias de qualquer dono apaixonado. Falamos com eles, sentimos falta quando estamos longe, e sofremos quando um dá uma escapada. Aquela fugida leva todos da casa para uma perseguição pelo condomínio. Casas de vizinhos, embaixo dos carros, folhagens, tudo minuciosamente filtrado. Ainda bem que tem sido fácil reencontrar a turminha. Nenhum  se especializou  em esconde-esconde.
As tarefas se dividem por segmento e gênero. Mãe e filhas dão o banho. A filha mais nova trabalha mais nesse setor; virou especialista. Eu escovo e tiro os pelinhos embolados. Alimentação é tarefa de todos. Potinho sem água e sem comida, precisa de reabastecimento. Com filhas no território preguiçoso da adolescência, é preciso de vez em quando relembrar que animal de estimação não é um tamagochi. São seres vivos que necessitam de cuidados diários e constantes.
O problema de tanto xodó é conseguir impor limites. Os dois persas praticamente não miam. Mas tem seu jeito peculiar de pedir para entrar e sair do quarto ou ganhar um cafuné extra. Já o Gordo mia. Mia alto, se for preciso. Especialmente quando se sente só. Mas no fundo, no fundo, nenhuma exigência deles é pesada para ninguém.  Pode se dizer que praticamente nos consideram membros da família...

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Tá rindo de quê?

De repente, quando acordei, tinha uma bola na ponta do meu nariz. Vermelha, igual a de um palhaço. Fui ao espelho, olhei, esfreguei os olhos, vi que não era sonho. Tinha mesmo uma bola ali. E não saia. Cocei, peguei, apalpei, pensei em tentar arrancar, mas nada. Ela continuava firme. Só faltava a maquiagem e o circo. Liguei para um médico amigo e falei a respeito do corpo estranho que agora fazia parte do meu corpo. Ele riu, achou que era brincadeira, depois viu que eu não estava em condições de fazer palhaçada. Só estava com cara de palhaço. Duro foi achar um disfarce para sair, chegar ao consultório sem ser notado. Impossível, claro! Assim que apareci na garagem do prédio o Gabriel, filho do Nonato gritou pra todo mundo ouvir: Olha lá, olha lá, o nariz de palhaço...Vermelho de raiva e vermelho na ponta das narinas, sai bufando. O que, nesse caso, deixava minha situação ainda mais ridícula.

Quando cheguei ao consultório, vergonha das vergonhas. Meu médico precisou sair. Falei para a recepcionista que era um caso grave. Ela riu! Do que falei ou da minha cara? Nunca saberei, mas comecei a pensar em entrar para os doutores da alegria. Nariz eu já tinha...Esperei num canto, longe de todos. Óbvio que o comentário na recepção não poderia ser outro. Era eu o alvo das risadinhas, piadinhas e ti-ti-ti. O bobo da corte...

Quando o Orlando chegou, veio com a piada pronta: Meu grande amigo, disse ele, agora sim posso voltar para meu empreendimento. Orlando Orfei volta à estrada em grande estilo. Que merda! Meu médico tinha que ter nome de dono de circo. E ainda era um péssimo piadista.Aguentei as brincadeiras de praxe no consultório  e o exame começou. Veio uma junta médica. Eu era o objeto de estudo mais estranho que havia aparecido ali em anos. Uma bactéria, um fungo, uma alergia, um câncer, uma espinha gigante, um implante extraterrestre... tudo quanto é teoria pintou entre análises mais sérias e gaiatices. O formato do nariz pedia isso! Fui examinado a fundo, filmado, fotografado, debatido. A conferência on line daquele dia girou em torno disso. Até mesmo uma possível nova doença foi ventilada: algo como Narinas de Arlequim, pra não dizer palhaço, de cara.

Infelizmente precisei operar. E com um dos maiores nomes da cirurgia plástica do país. A bola não sairia sem essa intervenção. Pedi para ficar internado. Não iria embora com o nariz assim nem se fosse chamado pelo Cirque De Soleil. Ainda bem que tudo correu bem. Em poucos dias eu já estava de volta à rotina. Até aprendi a rir dessa história. E a conviver com o apelido que me deram: Arrelia. E dos convites que ainda recebo para alegras festas de criança. Para os mais íntimos respondo com uma piada pronta também: Só se tua mãe for a mulher barbada...

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Viva o pânico

Depois de muita economia, um aperto aqui, outro ali, a família comemorava a instalação da antena com sinal de TV fechada. O pacote prometia um show de canais. Esporte, filmes, seriados, desenhos, moda, notícias, com apenas um toque no controle remoto. O pai, seu Genésio, não via a hora de mostrar pra filharada o canal que reprisava novelas e programas que um dia foram  líderes de audiência. Tinha lido em algum lugar que aquela emissora já era a mais assistida em alguns horários. Também, dizia ele, não era pra menos, naquele tempo é que se faziam programas de verdade. Como se o “naquele tempo” fizesse tanto tempo assim.


O canal, naquela noite, exibiria a Escolinha do Professor Raimundo, o Viva o Gordo e algumas novelas. Por mais que a molecada insistisse em dar uma olhada nas séries com vampiros e canais de música, de preferência algum com a Lady Gaga, seu Genésio permanecia irredutível. Nem mesmo a bondade abnegada de dona Maria Francisca seria capaz de ajudar  a turminha. Todos teriam que conhecer o que o pai e a mãe um dia curtiram. No máximo uma navegada no intervalo estaria permitida.


Eram sete na sala: o casal e cinco filhos. O mais velho com 19 e a mais novinha com 11. A impaciência era compatível com a ordem de idade. Os mais moços até curtiram um bocadinho mais os quadros e brincadeiras. A curiosidade para ver como as coisas eram, ajudou a segurar a onda por um tempo. Principalmente com o delicioso humor da Escolinha. Na hora do Gordo, com Jô Soares em grande estilo, a insatisfação começou a azedar o clima na sala. Enquanto Genésio e Maria riam escancarados, o resto da plateia se esforçava para entender piadas com o Plano Cruzado, a Sunab, os fiscais do Sarney, Tele Santana...


A de 11 e o de 13, Maria Carla e Reinaldo Henrique, dormiram no primeiro bloco. Não chegariam até a novela e talvez nem se interessassem por saber quem matou Odete Roitmann de novo. Os demais aguentaram firmes. Mas um dos intervalos forçou uma reunião de família em caráter de emergência. Paulo Eduardo, Maycon Felipe e Elaine Taiane queriam seu espaço reservado também. Afinal, domingo tinha o Pânico e segunda o CQC, sem contar as series da Sony e Warner,  assuntos obrigatórios na escola e no trabalho.


Ficou estabelecido que haveria  horários conforme a faixa etária. Seria preciso também  outro aperto no orçamento para comprar uma 14 polegadas pro quarto do casal. E assim foi feito: enquanto Genésio e Maria riam ou choravam com suas lembranças, a filharada se revezava entre sangue, rock, suspense e uma ou outra dose de National Geografic. O canal adulto era assunto para outra reunião. Sem elas!

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Calçada da fama

Adamastor se vangloriava. Dizia ser o maior vendedor de filmes piratas da cidade. Um verdadeiro Barba Ruiva, ou Negra. Mais ainda: um Jack Sparrow das calçadas entulhadas de artigos copiados, filmes clandestinos, brinquedos sem data de validade e eletrônicos de pouca duração. Uma produção nem bem havia sido lançada em algum tapete vermelho e ele já tinha o material. Com e sem legenda. Capa dura, artigo quase de luxo. Um show, por apenas 10 reais. Isso mesmo! Cobrava mais caro que a maioria na praça. Tinha um nome a zelar. Seus produtos não eram qualquer artigo de segunda, ou terceira. Eram coisa de  primeira. Se é que um filme desses pode ser chamado assim.
Adamastor tinha uma família grande. Dizia isso sempre. Até mesmo quando uma blitz baixava na região. Era assim que se defendia. Ia até na imprensa. Eu tenho mulher e cinco filhos. Preciso trabalhar. Não sei fazer outra coisa. Querem que eu vire um criminoso? Em algumas das idas até a delegacia, o Juninho ia junto. Seu filho mais velho trabalhava com ele desde os tempos do VHS. Adamastor e Adamastor Júnior começaram cedo na pirataria da sétima arte. Comércio que ele garbosamente batizou de Cinema Alternativo.
Certo dia Juninho chegou para o pai e disse que ia fazer faculdade. Iria estudar pra valer. Não mais fazer o contraturno escolar que exercia há anos. De manhã no colégio, à tarde na calçada da pirataria. Seu desejo era ir embora. Queria cursar Cinema. E não houve argumento que desse jeito. Adamastor estava perdendo seu gerente de vendas para o ensino superior. E que curso o gajo resolveu fazer!! Puxou um filho mais novo para a função e liberou o rapaz. Mas ele teria que se virar sozinho. Não dava para patrocinar o sonho. Romperam. Adamastor ficou sem falar com Juninho durante anos...
Mal imaginava  que o futuro lhe pregaria uma grande peça. E foi num dia em que novas mercadorias chegaram. O lote de filmes trazia estampado o maior sucesso do cinema nacional naquele ano. O trabalho de um jovem diretor que contava a história de um rapaz que trabalhou a vida inteira com o pai, vendendo filme pirata nas calçadas.  O nome do filme? Cinema Alternativo. 

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Isso não é nada!

Tem gente que gosta de contar vantagem sobre as doenças que já teve, os acidentes que sofreu, seus próprios dramas e casos. Na rodinha de amigos é só você falar de uma gripe que lá vem eles com no mínimo uma pneumonia. O Braguinha é assim: basta começar uma conversa sobre alguma enfermidade para ligar o alerta dos males que um dia ele sofreu, ou inventa que sofreu.
Dia desses, no intervalo de um jogo pela TV, falei de um problema no dedão do pé, que nunca mais foi o mesmo depois de uma partida de futebol na adolescência. Pra quê!! O Braguinha logo lascou sua frase predileta: Isso não é nada! Você precisava ver como ficou meu pé inteiro, depois de uma solada que levei no Varzeano de 1985. Lembra? Patrocinado pela Antarctica? Pois é! Inchou tanto, tanto, que nem deu pra colocar o gesso.
Semana seguinte, um churrasquinho na casa do Dadá, e novamente a turma toda estava reunida. Alguém falou em jogar bola no calor  e como isso era perigoso. Tentaram até contar uma ou outra passagem sobre pele queimada, ou algo assim, mas o Braguinha acordou inspirado naquele domingo. Isso não é nada! Vocês tinham que ver como eu fiquei quando tinha 9 anos. Estava jogando na frente de casa, um futebolzinho daqueles que a gente coloca os tijolos pra fazer de gol, e devia estar uns 40 graus. E eu descalço. De repente comecei a sentir uma coisa mole embaixo dos pés. Quando dei por mim a coisa tinha desandado toda. A sola estava quase solta. Minha mãe gritou por meu pai que correu me levar pra farmácia do Tião Novalgina. De lá para o hospital e pronto. Tiveram que tirar a sola inteira. Fiquei uns 3 meses indo pra escola carregado. A história do Braga era novamente imbatível.
Depois de um silêncio quase sepulcral, uma voz surgiu saindo de perto da churrasqueira. E justamente do Agenor, que quase nunca falava nada. Como quem escondia um segredo há tempos, ele contou a história de quando levou um choque, ficou morto por mais de 15 minutos, foi ressuscitado  pelo socorro médico e tem as marcas da descarga elétrica pelo corpo até hoje. Tirou a camisa, a calça, ficou só de calção de banho e exibiu umas marcas pretas que a gente nunca tinha visto. E ainda falou da experiência de ver uma luz branca, sentir uma paz incrível lá do outro lado e até conversar com alguém que lhe disse que ainda não era sua hora. Quando Braguinha tentou abrir a boca para dizer que isso não era nada, olhou pros lados, viu que havia descoberto uma história de outro mundo. Como por lá ele ainda não tinha ido, experimentou sua primeira grande derrota. Viva o Agenor!!!

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Olhos de felicidade

 
Abri a internet e vi uma foto da Madre Teresa. Faz tempo que tenho nela uma referência. Li a história do fotógrafo que pedia insistentemente para registrar o olhar da Madre. Queria porque queria aproximar sua câmera do rosto dela. Ao ser perguntado sobre a razão daquilo, ele disse que era porque aqueles olhos eram os mais felizes que já tinha visto. Madre Teresa respondeu dizendo que isso  acontecia em função das muitas lágrimas que ela já havia enxugado.
Cada vez que leio algo a seu respeito, enxergo melhor que tipo de fé e serviço fizeram daquela mulher alguém tão especial. Ela acreditava em Deus através da humanidade. Não havia filtro para seu amor. Quando decidiu deixar a clausura para tocar nas pessoas, curá-las, Madre Teresa rompeu regras e paradigmas...Começou um trabalho vivo. Queria uma igreja que praticasse, não apenas mandasse fazer.
Escrevo a crônica de hoje logo após noticiar em meu programa de TV um novo assalto praticado em Porto Velho. Perto do meio-dia, seis homens armados renderam uma família e os funcionários da empresa que funcionava no mesmo prédio de sua casa. Horas de terror seguidas de horas de frustração. Sem amparo, sem socorro, nem mesmo o da polícia.
Claro que seria pedir demais para a igreja de hoje que socorresse tantos e tantos que estão sofrendo, vítimas da criminalidade. Ou vítimas da falência da saúde pública; reféns da armadilha que o mundo armou para si mesmo, em quase todos os setores.
Sei que não deveria despertar a alma de Madre Teresa para lamentar o desamor.Mas também sei que precisamos de referências históricas para não nos perdermos nessa história toda.
Me vi na pele daquele fotógrafo à procura de um olhar feliz. Sem uma máquina na mão e o lenço na outra, resolvi usar os dedos para dizer que ainda acredito; mais do que ontem! E que transformei o espaço de crônica domingueira de hoje em editoral por absoluta necessidade de desabafo. Acho que você já se sentiu assim também, certo? Indignado, sem armas, com somente um bocadinho de fé...

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Vive La France

Sivuplê era uma figuraça. Tinha  mania de enfiar umas palavras em francês no meio das frases. Dizia que tinha estudado uns anos e adorava o idioma. Participava de tudo quando era concurso com viagem e  hospedagem para a França, mas nunca havia vencido nenhum. Era a alegria da turma. Galanteador e bem humorado, não demorava em pedir um favor só para dizer s’il vous plait( daí o apelido) e depois agradecer dizendo merci, com direito a biquinho.
O nome de batismo era José Olegário. Nenhum francês na família nem balançando a árvore genealógica. Ele não se importava. Adorava as expressões e caprichava na pronúncia. Como a gente trabalhava junto, logo cedo vinha o bonjú, seguido de um sali çava. Eu respondia em português, é claro: Bom dia, estou bem, e você? Sivuplê insistia comigo: Em francês mon ami,  aprenda que um dia lhe será útil.
Numa dessas ficamos sabendo que uma empresa francesa iria instalar uma unidade industrial na cidade. Sivuplê ficou maluco. Começou a decorar novas frases, caprichar na história e fazer contatos para conseguir uma vaguinha na festa de apresentação. As obras começariam em poucos dias. O momento era grande! Pela primeira vez o município receberia uma marca multinacional. E ainda francesa. Para Olegário era a glória. Melhor que isso só o levêdisóléi, “lever du soleil”, o nascer do sol. Coisa que adorava dizer, mesmo fora do contexto.
E não é que ele conseguiu um convite? E ainda me levou junto. Na festa, que alegria! Aquela francesada toda. Posso garantir que feio ele não fez. Ao menos com uma das convidadas. Uma magrinha, com nariz empinado que logo de cara se engraçou com o ele. Cheio de manias e floreios,  gastou frases e habilidades como pode. Lembrava até o inspetor Cluseau, da Pantera cor de rosa. Não na voz original do Steve Martin, mas na do  dublador brasileiro; impagável e genial.
Curioso é que no dia seguinte à festa, Sivuplê não foi trabalhar. Liguei e não posso dizer que tenha me surpreendido. Havia sido convidado para um cargo na nova empresa. Em qual função nem ele soube me dizer. O convite era irrecusável... IRRÉCUSABLE!! Emanuelle Girandeu, a moça do nariz arrebitado, era filha de um dos sócios. Não havia entendido nem a metade do que ele falou, mas o suficiente para saber que meu amigo era o cara. Ainda mais depois de saber seu apelido.
O último presente que me mandou veio direto de Paris, depois de um giro que fez com a noiva. Uma camisa do Zidane, autografada pelo ex-jogador com a frase: Prends soin de toi!: Se cuida!

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Cerca elétrica

Acordei melancólico!  Me vi nostálgico hoje, desde o momento em que escovei os dentes e  lembrei da pasta Kolynos, amarela e verde, do banheiro da minha infância. Quando entrei no carro, juro pra você que enxerguei um toca-fitas, daqueles que saiam inteiros do painel e a gente carregava, como se fosse um objeto de desejo ou um troféu. Era por segurança e tinha um charme lascado. Claro que apelei pro CD, o tocador  mais antigo que tenho à disposição no veículo. Mandei ver nas músicas que um dia já foram...

Não sou assim diariamente. Quem convive comigo sabe que gosto de estar antenado. Mídias sociais, avanços tecnológicos, interatividade, modernidade, fazem parte do modo de vida que abracei. Mas hoje, não sei se foi o sonho, ou alguém que vive em mim, acordei com saudade.
Quando dirigia em direção ao trabalho, a velocidade não foi a mesma da correria do dia a dia. Acelerei em paz. Recordando quando meu pai me ensinava a dirigir, em seu Opala Comodoro,  e insistia para que eu tirasse o pé da embreagem. Às vezes ele mesmo se abaixava e empurrava meu pé esquerdo para o lado. Use só na hora certa, na hora de trocar a marcha, dizia... E não corra! Queria me transformar num educado motorista urbano, preparado para as estradas da vida.

Quando cheguei ao trabalho, com meu lugar no estacionamento já ocupado, deixei pra lá. Achei um canto, tirei a mochila com o computador de bordo e fui para minha sala. No caminho, um bom dia aqui, outro ali, os comprimentos de praxe, parte da rotina que apontava para o hoje, o agora. Mas eu havia acordado ontem. Estava ainda com a sensação de que meu passado, de alguma maneira me chamava para trás. Como se fosse possível reverter a quilometragem já rodada.
Sentei, comecei a escrever a crônica da semana. Queria de algum modo fazer uma ligação direta com os aromas, as canções, os livros, os filmes, as pessoas, as imagens que um dia foram vivas. Mas temia porque podia ser algo só meu. O que tem o leitor a ver com minha nostalgia? E se ele disser que  o que importa são  suas próprias lembranças?

Que nada! Descansei de novo.  É que as lembranças se misturam. Temos muito em comum. A saudade de casa, a preguiça que despertava junto com o relógio que anunciava a hora da aula, o medo da velha de branco que atacava no banheiro da escola, o sítio do tio, a fome que dava no meio da tarde, a primeira vez que os olhos viram o mar, o retiro da igreja, o cigarrinho escondido no telhado de casa, o homem na lua, a bicicleta de natal, o beijinho de boca fechada, o barulho que o portão fazia.  Lembro bem daquele portão:  ele não tinha cerca elétrica.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Beradeiro adotivo


Pessoal, vou completar 10 anos de Rondônia. To escrevendo essa carta para dizer que por aqui anda tudo bem. Quer dizer, tem coisa que não anda. Ou a rua não tá boa pra andar ou tem um acidente logo ali que atrapalha a andação. Mas no mais, a gente tá seguindo em frente. Fiquei um tempo no interior, mas mudei logo pra capital. Porto Velho cresce mais que a torcida do Flamengo. E cresce hein! Pra cima, para os lados, e infelizmente pra baixo também. Muita gente morrendo; cada morte besta sô! Coisa que nem dá pra acreditar.

De uns tempos para mais perto de hoje, descobri que gosto mais daqui a cada dia. Ando me sentindo perto do que foi esse lugar. E isso me deixa chegado ao  que ele é hoje... Entende? Apegado à sua história. Descobrindo mais de sua arte. Sabendo sobre sua gente. Amando a poesia e músicas que já compreendo melhor... na medida em que descubro o que faço e quem sou aqui.

Ando querendo virar beradeiro. Não que eu vá morar na beira do rio. O Madeira  fascina a gente não só por sua água. Existe um rio que corre dentro das pessoas aqui. Ele já matou a sede de amor de tantos poetas, a fome de verdade de tantas famílias, a sina de querer chegar mais longe de tantos viajantes, que só mesmo bebendo dele pra saber.
Dia desses me convidaram para fazer parte da Academia Beradeira de Letras, ou de Ideias. Imagina só, mãe! Virei cidadão de Rondônia e agora vou tirar o sapato para afundar os pés na margem, escrevendo, poetizando, lendo, ouvindo, rezando...

Aqui é assim! Gente beradeira de fato, abrindo os braços para quem pede asilo, abrigo, cidadania. Vou aceitar como quem aceita um bom pedaço de peixe com farinha.
Bem, tá na hora de encerrar a carta. Assim que der envio outra. Sei que vocês querem saber mais sobre a Estrada de Ferro, as riquezas,  se é verdade que aqui tem pantanal, cerrado e floresta. Pode deixar que mando notícia timtim por timtim. Creio que daqui uns outros 10 anos as palavras serão mais puras e completas. Ainda escrevo como um menino. É só uma década de estadia. E só agora a alma está sendo recebida no céu de beradeiro... Amém!

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Meu nome é destino

O nome não ajudava muito: Escandinávia. O pai leu em algum livro e decidiu que ela se chamaria assim. O outro filho não teve melhor sorte. Foi batizado de Arquipélago. Mesmo assim a duplinha cresceu sem maiores dramas. Só na escola é  que a situação enroscava. Na hora da chamada a menina sofria com o riso da turma. Seu irmão, não aguentava as piadinhas: E aí, Arqui? Muito isolado??? Como está o mar hoje?
A vida seguiu seu rumo, os dois conseguiram concluir o ensino médio e deram umas pitadas de orgulho para os pais. Apesar da gozação com os nomes, praticamente a vida toda. Ela continuou estudando. Virou professora, de Geografia, veja só que ironia! Já o rapaz parou com esse negócio de escola. Como batia um bolão, decidiu que iria jogar futebol. Fez teste em tudo quanto é time da cidade. Foi bem  na maioria deles, só que a falta de um padrinho fechou as portas.
Mas um dia o  convite tão esperado chegou. Uma vaga em um clube empresa que havia começado a trabalhar há pouco tempo no país. Não demorou muito até que ele brilhasse. Um torneio na Suécia  deixou o rapaz por lá mesmo. Iria jogar com outro nome?  Aqui era chamado de Arqui, mas lá não foi necessário nem apelido nem o sobrenome. Bastou uma adaptação. Arquipélago em Sueco é Skärgård. E foi assim que a camisa 10 do seu time recebeu o novo batismo do craque: o brasileiro Skärgård.  Lá fez sua vida. Levou os pais e até alguns amigos para morar junto. Só a irmã não queria largar o Brasil. Apesar dos dois serem muito apegados...
O destino se encarregou do reencontro. Num exame de rotina   Skärgård teve identificado um sério problema nos rins. Só um transplante o salvaria. Sua irmã era compatível. Doou um dos rins e o rapaz em breve pode voltar a atuar pelo time sueco. Em seu retorno, com toda a família no estádio e a alegria incontida dos fãs, uma grande faixa na arquibancada dizia tudo: A Escandinávia salvou o Arquipélago.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Obituário

Ele sabia que já não se fazem mais obituários como antigamente. Nem
mesmo os jornais são feitos como antes. Aliás, poderia ser escrito um
obituário para quase tudo, já que a maior parte das coisas de que nos
lembramos parece ter se perdido, ficado enterrada em algum
lugar. 


Mesmo assim insistiu com a editora do jornal. Pediu, quase
implorando, que ela publicasse aquela pequena homenagem para alguém
que havia morrido. Pra piorar, a morte havia acontecido há 22 anos.


Como explicar a publicação, numa página nobre, de uma nota
com a data de vencimento expirada há mais de duas décadas?
De tanto insistir ele a convenceu de ler o texto. Caso não
gostasse podia simplesmente manter o não inicial. Sua atenção já era
um bom caminho andado. E assim estava escrito:

Não acordou naquela manhã pela primeira vez em 51 anos. Seu coração
decidiu que era hora de parar de bater por aqui. Homem simples, pouca
vezes alguém ouviu de sua boca um palavrão ou uma frase em voz alta.


Era manso... Humilde no trato, amável no jeito, simples na conduta,
inteligente e bem informado. Trabalhou muito, a vida toda. Da roça pra
cidade, onde serviu o exército, foi barbeiro, estudou, virou bancário,
contador, corretor, vendedor, viajante. Até numa chácara chegou a
levar a família pra morar. Para os filhos herança não deixou. Não
dessas que se conta no banco. Mas o amor pelos livros, o gosto por
modas de viola, o encanto pelo canto dos pássaros, pelo sabor do peixe
pescado na hora, seu jeito de acreditar sem precisar ter fé e de ter
fé mesmo quando desconfiava.


Não era de ir à igreja; trazia uma reverência quase santa pela
honestidade. Não roubava, nem no truco, na canastra, na sinuca, no
xadrez. Gostava de um cigarrinho, lá de vez em quando, ou uma
cachacinha de alambique. Tinha que ser das boas. Se era pra ter
prazer, que ele fosse genuíno.


Adorava um bom Dodge Dart, ou um Charger RT. O Opala também era
paixão. Falava quase emocionado sobre a potência daquele motor, o
ruído clicado da suave troca de marchas. Teve também seus fusquinhas.
E por um bom tempo carregou mulher e filhos numa velha e poderosa
bicicleta preta, Gallo.


Por falar em filhos, além da esposa deixou os três bem criados,
encaminhados, como diria. Não chegou a ver todos os netos. Quer dizer,
não com os olhos que um dia contemplaram seu time quebrar um jejum de
23 anos na fila. Curioso como aquele coração aguentou tanto e ficou
fraco por tão pouco. Nunca falou sobre uma possível doença. O Mal de
Chagas, provável causa da morte, só surgiu como informação muito tempo
depois.


Sua morte aconteceu num 21 de maio. Para evitar rompantes de socorro
ele se foi quando os filhos estavam longe. Não houve despedida. Não do
jeito que a imaginamos, ou desejamos. Foi um corte, um desligar sem
chance, uma parada obrigatória.


Seu nome? Deixo guardado no coração de filho. Você pode preencher com o nome de um pai amado. Se também estiver com saudade...

terça-feira, 19 de abril de 2011

Na hora, sem adeus

Foram poucas as vezes que ele teve vontade de sumir. Mas aos poucos aquela sensação de deslocamento o dominava. Nos dois sentidos: sentia-se deslocado e queria se deslocar para o mais longe possível. Começou até a comentar com um ou outro essa possibilidade. E era nessas horas que a certeza vinha com mais força. Os amigos não levavam a sério. Ou tinham como sério e prioridade os seus próprios problemas. O que é compreensível. Cada um no seu cada qual. O mundo está assim, ensimesmado.
Um dia, dirigindo entre buracos, lama e um trânsito terrivelmente mal educado, ele abriu a porta do carro e saiu...Sem rumo. Deixou o veículo ali  mesmo. Ainda ouviu uns palavrões ao fundo e umas buzinas que reprovavam o abandono da batalha em plena guerra pelo espaço apertado das ruas. Pra onde você vai? Seu desgraçado! Volta aqui! Você vai ver...
Andou até a saída da cidade, depois mais alguns quilômetros, carregando uma pastinha e se desfazendo da gravata e o nó que apertava mais do que sua garganta. Horas depois, o celular tocou. De casa alguém mandava uma mensagem para ele não esquecer de comprar pão, ração, mistura. O celular ficou por ali mesmo. Jogado num acostamento qualquer, para ser carregado pela chuva que começava a cair.
A caminhada foi longa. Ele só parou, ensopado e cansado, muito tempo depois, quando já era noite. Sua falta foi sentida. A polícia foi chamada. Ele nunca deixava de atender o celular. Chegava sempre na hora. Fazia tudo tão direitinho. Um homem assim não abandonaria tudo e todos. Só podia ter sido sequestrado. Se é que no caso de pobre a palavra sequestro serve também.
O problema é que até mesmo desaparecer hoje em dia é algo  complicado. O cartão de crédito denuncia, ainda mais quando está no limite. Com tanta mídia se enroscando por aí, fica ainda mais fácil descobrir por onde anda o desaparecido. Quando os policiais o encontraram, numa pequena pensão de uma cidadezinha do interior, não souberam o que fazer. Desistir de tudo não é crime. O jeito foi tentar uma conversa, convencê-lo de que voltar seria o mais certo.
Depois de muito tempo sem conseguir êxito, eles foram embora. O caso não era caso de polícia. E o rapaz parecia bem. Embora seu olhar permanecesse distante e a boca em silêncio...


quinta-feira, 14 de abril de 2011

Encantado

Que cantor era o  Marcelo Barroso. Voz poderosa, afinada, bonita, entoava Gardel, Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, com a mesma qualidade com que cantava clássicos italianos, franceses e até mesmo uma ou outra peça  mais refinada. Gosto bom, talento de gênio, um baita intérprete. Um dia, num dos programas de rádio em que se apresentava, ela apareceu no estúdio. Foi entregar um recado de última hora pro locutor. Seu Edgar, desculpe  o incômodo, mas é urgente e o Robertinho precisa que o senhor dê esse recado agora, antes do cantor se apresentar...

Enquanto o Edgar  lia o reclame, nosso Marcelo  seguia com olho esticado os passos da moça saindo do estúdio. Fingiu uma ida ao banheiro para seguir um pouco mais, corredor afora. Passou em frente a sala onde ela trabalhava, matou um tempinho no WC e deu mais um oizinho na volta.  Retornou como um balão de gás hélio. Flutuava! Nada o faria sair dali sem o telefone dela e um convite para um jantar. Naquela época convidar para sair  era algo obrigatório. Beijar, pegar, ficar, ainda precisavam  de rituais que já saíram da moda.

Naquela manhã nosso cantor cantou como nunca. El dia em que me quieras foi tão bem interpretado que o telefone da rádio quase explodiu. Depois do show  saiu acelerado para falar com a moça...  Aí veio o choque, a dor, a frustração: ela era namorada do novo gerente da emissora. Linda, perfeita, sorriso de fechar o comércio e vender todos os ingressos do cinema. Mas comprometida. E logo com quem, o Robertinho.

Marcelo ficou um tempo se voltar ao programa. Nem mesmo nas outras rádios aparecia. Rarearam as festas, quase não ia mais ao teatro. O trabalho no cartório,  que todo mundo dizia que não era para um talento com  tamanha voz, foi tomando o seu tempo e afogando a paixão entre certidões de nascimento e reconhecimento de firmas.

Até que um dia, ela, ainda mais linda, ainda mais encantadora,  entrou à procura do escrivão juramentado. Precisava falar com ele sobre uns documentos de família. Esticou a mão, disse que se chamava Narinha  e precisava de ajuda.Tinha deixado o emprego, porque trabalhar com um ex-namorado mandando não dava certo. Regularizar os terrenos da família seria a melhor forma de garantir uns rendimentos enquanto procurava trabalho em outro lugar. Sem perder tempo, Marcelo perguntou em tom  melódico: Já pensou em trabalhar no cartório?

segunda-feira, 4 de abril de 2011

O poeta

Quando o conheci ele já era poeta. Músico também. As palavras sempre passearam por sua mente e surgiram em grande escala. Frases, ritmos, poesia, pensamentos com ruídos, formas, cores, silêncios...Parceiro de Leminski,  Marcos Prado, Centurião e tantos outros monstros que embelezaram o planeta das palavras, foi também meu mentor e mestre...
Nunca me esqueço dos dias em que apresentava a ele um ou outro dos meus textos. Não foram poucas as vezes em que o poeta rasgou tudo. Isso mesmo! Rasgou...Dizendo que eu podia mais. Que aquelas palavras ali, não diziam quem eu era.
Com ele  aprendi mais sobre a amizade. Nas horas em que passamos juntos produzindo algo, fazendo televisão, ouvindo músicas, comendo um bom churrasco, ou não dizendo nada, sempre obtive  informações preciosas. Sobre a vida e o que ela tem a oferecer, mesmo que aparentemente esteja com a mão fechada.
Botar um band-aid no buraco da bala e parar de me fazer de vítima, foi algo que aprendi com ele, ouvindo esse trecho de uma de suas canções. O amor pela mãe, pelos filhos, pela mulher, pelos amigos, pelos versos, pela  prosa, pelos sonhos. A reverência diante de Kurosawa, o xis da questão de Tao, o evangelho segundo Thadeu, o respeito por quem sabia menos, eu...
Hoje, sempre que posso, em palestras, crônicas, programas de TV, roda de amigos, na Confraria da Palavra, cito nossa amizade com alegria. Falo do poeta que ama pescar e me fez fumar muitas vezes, mesmo sem eu nunca ter botado um cigarro na boca.  Falo com zelo de quem ainda prepara o texto,  mesmo sabendo que ele poderá ser rasgado e queimado. Pronto para ouvir ou ler que posso mais. Devo brincar com as palavras. Saber sobre o sabor de cada uma delas...
Espero poder reencontrá-lo logo. Num mundo de poucos amigos, desfrutar de uma amizade que nunca te pede nada e tanto te oferece, é um tesouro sem o x no mapa. Acho que vou parar de tanto esperar e comprar logo minha passagem. Curitiba é logo ali. E meu amigo Antonio Thadeu Wojciechowski sempre tem um canto na sala e um lugar imenso no coração.