quinta-feira, 26 de maio de 2011

Vive La France

Sivuplê era uma figuraça. Tinha  mania de enfiar umas palavras em francês no meio das frases. Dizia que tinha estudado uns anos e adorava o idioma. Participava de tudo quando era concurso com viagem e  hospedagem para a França, mas nunca havia vencido nenhum. Era a alegria da turma. Galanteador e bem humorado, não demorava em pedir um favor só para dizer s’il vous plait( daí o apelido) e depois agradecer dizendo merci, com direito a biquinho.
O nome de batismo era José Olegário. Nenhum francês na família nem balançando a árvore genealógica. Ele não se importava. Adorava as expressões e caprichava na pronúncia. Como a gente trabalhava junto, logo cedo vinha o bonjú, seguido de um sali çava. Eu respondia em português, é claro: Bom dia, estou bem, e você? Sivuplê insistia comigo: Em francês mon ami,  aprenda que um dia lhe será útil.
Numa dessas ficamos sabendo que uma empresa francesa iria instalar uma unidade industrial na cidade. Sivuplê ficou maluco. Começou a decorar novas frases, caprichar na história e fazer contatos para conseguir uma vaguinha na festa de apresentação. As obras começariam em poucos dias. O momento era grande! Pela primeira vez o município receberia uma marca multinacional. E ainda francesa. Para Olegário era a glória. Melhor que isso só o levêdisóléi, “lever du soleil”, o nascer do sol. Coisa que adorava dizer, mesmo fora do contexto.
E não é que ele conseguiu um convite? E ainda me levou junto. Na festa, que alegria! Aquela francesada toda. Posso garantir que feio ele não fez. Ao menos com uma das convidadas. Uma magrinha, com nariz empinado que logo de cara se engraçou com o ele. Cheio de manias e floreios,  gastou frases e habilidades como pode. Lembrava até o inspetor Cluseau, da Pantera cor de rosa. Não na voz original do Steve Martin, mas na do  dublador brasileiro; impagável e genial.
Curioso é que no dia seguinte à festa, Sivuplê não foi trabalhar. Liguei e não posso dizer que tenha me surpreendido. Havia sido convidado para um cargo na nova empresa. Em qual função nem ele soube me dizer. O convite era irrecusável... IRRÉCUSABLE!! Emanuelle Girandeu, a moça do nariz arrebitado, era filha de um dos sócios. Não havia entendido nem a metade do que ele falou, mas o suficiente para saber que meu amigo era o cara. Ainda mais depois de saber seu apelido.
O último presente que me mandou veio direto de Paris, depois de um giro que fez com a noiva. Uma camisa do Zidane, autografada pelo ex-jogador com a frase: Prends soin de toi!: Se cuida!

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Cerca elétrica

Acordei melancólico!  Me vi nostálgico hoje, desde o momento em que escovei os dentes e  lembrei da pasta Kolynos, amarela e verde, do banheiro da minha infância. Quando entrei no carro, juro pra você que enxerguei um toca-fitas, daqueles que saiam inteiros do painel e a gente carregava, como se fosse um objeto de desejo ou um troféu. Era por segurança e tinha um charme lascado. Claro que apelei pro CD, o tocador  mais antigo que tenho à disposição no veículo. Mandei ver nas músicas que um dia já foram...

Não sou assim diariamente. Quem convive comigo sabe que gosto de estar antenado. Mídias sociais, avanços tecnológicos, interatividade, modernidade, fazem parte do modo de vida que abracei. Mas hoje, não sei se foi o sonho, ou alguém que vive em mim, acordei com saudade.
Quando dirigia em direção ao trabalho, a velocidade não foi a mesma da correria do dia a dia. Acelerei em paz. Recordando quando meu pai me ensinava a dirigir, em seu Opala Comodoro,  e insistia para que eu tirasse o pé da embreagem. Às vezes ele mesmo se abaixava e empurrava meu pé esquerdo para o lado. Use só na hora certa, na hora de trocar a marcha, dizia... E não corra! Queria me transformar num educado motorista urbano, preparado para as estradas da vida.

Quando cheguei ao trabalho, com meu lugar no estacionamento já ocupado, deixei pra lá. Achei um canto, tirei a mochila com o computador de bordo e fui para minha sala. No caminho, um bom dia aqui, outro ali, os comprimentos de praxe, parte da rotina que apontava para o hoje, o agora. Mas eu havia acordado ontem. Estava ainda com a sensação de que meu passado, de alguma maneira me chamava para trás. Como se fosse possível reverter a quilometragem já rodada.
Sentei, comecei a escrever a crônica da semana. Queria de algum modo fazer uma ligação direta com os aromas, as canções, os livros, os filmes, as pessoas, as imagens que um dia foram vivas. Mas temia porque podia ser algo só meu. O que tem o leitor a ver com minha nostalgia? E se ele disser que  o que importa são  suas próprias lembranças?

Que nada! Descansei de novo.  É que as lembranças se misturam. Temos muito em comum. A saudade de casa, a preguiça que despertava junto com o relógio que anunciava a hora da aula, o medo da velha de branco que atacava no banheiro da escola, o sítio do tio, a fome que dava no meio da tarde, a primeira vez que os olhos viram o mar, o retiro da igreja, o cigarrinho escondido no telhado de casa, o homem na lua, a bicicleta de natal, o beijinho de boca fechada, o barulho que o portão fazia.  Lembro bem daquele portão:  ele não tinha cerca elétrica.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Beradeiro adotivo


Pessoal, vou completar 10 anos de Rondônia. To escrevendo essa carta para dizer que por aqui anda tudo bem. Quer dizer, tem coisa que não anda. Ou a rua não tá boa pra andar ou tem um acidente logo ali que atrapalha a andação. Mas no mais, a gente tá seguindo em frente. Fiquei um tempo no interior, mas mudei logo pra capital. Porto Velho cresce mais que a torcida do Flamengo. E cresce hein! Pra cima, para os lados, e infelizmente pra baixo também. Muita gente morrendo; cada morte besta sô! Coisa que nem dá pra acreditar.

De uns tempos para mais perto de hoje, descobri que gosto mais daqui a cada dia. Ando me sentindo perto do que foi esse lugar. E isso me deixa chegado ao  que ele é hoje... Entende? Apegado à sua história. Descobrindo mais de sua arte. Sabendo sobre sua gente. Amando a poesia e músicas que já compreendo melhor... na medida em que descubro o que faço e quem sou aqui.

Ando querendo virar beradeiro. Não que eu vá morar na beira do rio. O Madeira  fascina a gente não só por sua água. Existe um rio que corre dentro das pessoas aqui. Ele já matou a sede de amor de tantos poetas, a fome de verdade de tantas famílias, a sina de querer chegar mais longe de tantos viajantes, que só mesmo bebendo dele pra saber.
Dia desses me convidaram para fazer parte da Academia Beradeira de Letras, ou de Ideias. Imagina só, mãe! Virei cidadão de Rondônia e agora vou tirar o sapato para afundar os pés na margem, escrevendo, poetizando, lendo, ouvindo, rezando...

Aqui é assim! Gente beradeira de fato, abrindo os braços para quem pede asilo, abrigo, cidadania. Vou aceitar como quem aceita um bom pedaço de peixe com farinha.
Bem, tá na hora de encerrar a carta. Assim que der envio outra. Sei que vocês querem saber mais sobre a Estrada de Ferro, as riquezas,  se é verdade que aqui tem pantanal, cerrado e floresta. Pode deixar que mando notícia timtim por timtim. Creio que daqui uns outros 10 anos as palavras serão mais puras e completas. Ainda escrevo como um menino. É só uma década de estadia. E só agora a alma está sendo recebida no céu de beradeiro... Amém!

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Meu nome é destino

O nome não ajudava muito: Escandinávia. O pai leu em algum livro e decidiu que ela se chamaria assim. O outro filho não teve melhor sorte. Foi batizado de Arquipélago. Mesmo assim a duplinha cresceu sem maiores dramas. Só na escola é  que a situação enroscava. Na hora da chamada a menina sofria com o riso da turma. Seu irmão, não aguentava as piadinhas: E aí, Arqui? Muito isolado??? Como está o mar hoje?
A vida seguiu seu rumo, os dois conseguiram concluir o ensino médio e deram umas pitadas de orgulho para os pais. Apesar da gozação com os nomes, praticamente a vida toda. Ela continuou estudando. Virou professora, de Geografia, veja só que ironia! Já o rapaz parou com esse negócio de escola. Como batia um bolão, decidiu que iria jogar futebol. Fez teste em tudo quanto é time da cidade. Foi bem  na maioria deles, só que a falta de um padrinho fechou as portas.
Mas um dia o  convite tão esperado chegou. Uma vaga em um clube empresa que havia começado a trabalhar há pouco tempo no país. Não demorou muito até que ele brilhasse. Um torneio na Suécia  deixou o rapaz por lá mesmo. Iria jogar com outro nome?  Aqui era chamado de Arqui, mas lá não foi necessário nem apelido nem o sobrenome. Bastou uma adaptação. Arquipélago em Sueco é Skärgård. E foi assim que a camisa 10 do seu time recebeu o novo batismo do craque: o brasileiro Skärgård.  Lá fez sua vida. Levou os pais e até alguns amigos para morar junto. Só a irmã não queria largar o Brasil. Apesar dos dois serem muito apegados...
O destino se encarregou do reencontro. Num exame de rotina   Skärgård teve identificado um sério problema nos rins. Só um transplante o salvaria. Sua irmã era compatível. Doou um dos rins e o rapaz em breve pode voltar a atuar pelo time sueco. Em seu retorno, com toda a família no estádio e a alegria incontida dos fãs, uma grande faixa na arquibancada dizia tudo: A Escandinávia salvou o Arquipélago.